sexta-feira, 24 de abril de 2015

A Rosa de São João


O sol entrava pelas janelas corridas da cozinha e dourava o balcão onde o esplêndido lombo de vaca, estendido, resplandecia. A seu lado, as cebolas descascadas, o feijão verde e os alhos amanhados na bacia verde, alinhavam-se para o assado que a Rosa, com gosto simples e mão experimentada, que é receita segura para o sucesso de quase tudo na vida, ultimava para o jantar. No aparelho de rádio portátil, comprado a prestações mensais na Singer, a Emissora Nacional emitia um programa de variedades musicais, onde pautavam as vozes xaroposas de vedetas da canção ligeira com que ela sonhava acordada e por que suspirava, à noite, no abrigo do quarto da cave que ocupava. O seu aposento, singelamente mobilado, era servido por uma escada que conduzia a uma porta de acesso exclusivo ao jardim, ficava mesmo ao lado da garagem onde, estacionado, envelhecia imobilizado o Mercedes preto, modelo 180, do senhor, que não chegara a conhecer pois falecera antes do seu tirocínio na casa. Rosa, moça trigueira e roliça, nada e criada numa aldeia transmontana, viera servir para as remotas paragens dos Estoris, em casa abastada de senhora idosa, que vivia sozinha desde o sofrido passamento do marido, homem naturalmente bom e comerciante de sucesso com fazenda longínqua, em terras africanas do Congo dito Português, para onde rumara quase imberbe no dealbar do século 20 e onde porfiadamente realizou o sonho empresarial que o animara desde sempre. Terras remotas onde a sua afável bonomia e o escrúpulo posto na palavra, não apenas no seu uso cuidado, mas muito principalmente no seu cumprimento, coisa de gente rara então, de quase nenhuma de agora, lhe conquistou o respeito da comunidade e a consideração das instituições locais. O seu Mercedes, quase sem quilometragem, seria mais tarde vendido a um taxista, e não haveria azo para espanto se ainda subisse e descesse as colinas de Lisboa, recolhendo e entregando turistas surpreendidos pela tenaz longevidade do fogareiro, muito naturalmente conduzido por farto taxista de grosso bigode e vocabulário da mesma condição. Senhora e Rosa partilhavam uma imensa casa vazia. A solidão de ambas apenas era interrompida pelas oportunas visitas e estadias das filhas da senhora, que nas suas vindas lhe traziam os genros e os netos, em número que assustaria a determinação de qualquer pessoa que tivesse a incumbência de assegurar a sua ordem e manutenção, mas não a alteada Rosa. Tresmalhados, os miúdos espalhavam-se pelo relvado do jardim, a que se acedia por uma escadaria ladeada por gerânios encarnados. No baloiço, fixado por grossos grampos ao relvado, organizavam competições com o objectivo de determinar quem conseguia saltar mais longe, acontecendo que, por vezes, as coisas não corriam de acordo com o que pretendiam, mas consoantemente às naturais leis da física, e então era comum os joelhos esfolarem-se na empresa. Quando veraneava, os netos da senhora, que medravam como podiam pelas austeras terras de Trás-os-Montes, ali arribavam ávidos de mar, fazendo estação e alterando a quietação ordenada dos dias que circulavam acorrentados a demorados silêncios e lentas rotinas, acentuados uns e outras pelos contrastantes rádios sempre ligados. Na cozinha, a telefonia da Rosa noticiava os últimos desenvolvimentos da volta a Portugal em bicicleta onde, aparentemente, as coisas estavam a correr de feição ao óbvio Joaquim Agostinho, escalador rústico de perna grossa e rosto saloio, que brilhara recentemente em França ao vencer em esforço, heroicamente, repetira o enfático jornalista ao microfone, uma etapa de montanha do mais elevado grau de dificuldade. Mas ela, anelante, aguardava pelo folhetim radiofónico, o simplesmente Maria. História que ela sentia repartir paredes, sem coincidir integralmente, com a história da sua vida. Os personagens, não sei se relato com fidelidade o enredo, mas creio que orbitavam uma singela e prototípica Maria que viera da aldeia serrana para a grande cidade e aí, inevitavelmente, se deixara seduzir por um vulgar conquistador, de ofício oleoso à semana e de brilho pastoso no cabelo e cigarro esgotado ao canto da boca, ao fim de semana, encostado ao balcão do bar onde os bombeiros voluntários locais, aos domingos, organizavam bailes para folguedo de sopeiras e magalas. Quotidianamente, em horário regulado, a desgraçada Maria padecia as poucas fortunas e os inúmeros e inevitáveis infortúnios do amor, em sintonizadas telefonias, cozinhas e criadas do país inteiro. Sentada na senhorinha de coçado veludo rosa, no seu quarto de 1º andar, a senhora rezava o terço com o Philips sintonizado na Renascença, enquanto pedia a Deus a sua salvação e a de todos os muitos que eram os seus. E o silêncio, imenso em volta dos rádios, pautava os dias de ambas. Mas os meninos tinham chegado ontem, as coisas tinham mudado. A campainha soou na cozinha, Rosa olhou o quadro que, suspenso na parede, indicava o número 1, a senhora a chamava. Rosa, já foste buscar os meninos à praia? Que não, mas que ia pronto, mal acabasse de pôr a carne a assar ao lume lento. Os meninos divertem-se por certo, senhora. E assim era. Na praia, de acesso escondido na estrada marginal, as arribas ostentavam um ambicioso edificado de traça tradicional, com íngremes escadarias privadas de acesso ao passadiço, e os meninos corriam no diminuto areal, mergulhando com alegria na estreita língua de água que separava a margem de um rochedo, apelidado de corvo por ser poiso frequente daquela ave abundante, e a que subiam, melhor seria dizer que escalavam, como se de um evereste marítimo se tratasse. A Rosa abreviou a felicidade dos pequenos chamando-os e recolhendo apressadamente as coisas da praia, os sacos, os termos dos sumos, os tupperware´s que haviam contido deliciosas bolas de berlim, e as toalhas ainda molhadas do último banho. Um dos pequenos persistia em bater teclas imaginadas num pequeno banco de madeira. A Rosa aproximou-se interpelando-o para parar com as escrituras. O petiz alimentava o secreto sonho de vir a ser poeta. Da clandestina actividade que desenvolvia no ramo havia resultado, em esforço, um poema que, salvo erro, rezava com ênfase exclamativa: “Ao longe, muito ao longe!/ Não!, porque ao longe muito ao longe, não há fim!/Só eu é que sei, só eu é que sinto, a dor que diz/Que ao longe, muito ao longe, não há fim.” Início promissor, portanto. Não sei se chegou a ser tocado por musa mais auspiciosa. A Rosa, mulher châ cujas leituras aprofundadas dos folhetins da Corín Tellado haviam alçado a crítica literária impiedosa, a quem o miúdo havia segredado a sua ambição, sentenciou o sucesso do nóvel poeta com gargalhada franca, no limite do estrondo. A praia terminara ainda o sol dizia presente, mas já quase se despedira. A Rosa entregara os meninos de volta à tutela da avó que, com aplicada curiosidade os indagava sobre as novidades acerca da praia. Que coisas poderiam haver ainda de novo, com que não se surpreendera ainda, coisas que não tivesse visto ou de que não tivesse ouvido falar na sua longa vida, e que lhe pudessem despertar ainda a vontade de mais saber? Pessoas há que tratam da vida, como se o seu suceder fosse coisa doente. A velha senhora sempre cuidara do que a vida pusera diante de si, na crença segura de que o esmero com que cuidamos do que é nosso e dos nossos, aperfeiçoa o viver próprio e o daqueles que nos são próximos. Vivera com desvelada devoção às coisas e às pessoas, não as tomando por imperfeitos males, mas por inacabados bens a haver, se cuidadas como devido. A firme senhora, mulher de ilustrada e definitiva vontade para com todos, reservava para os netos, sentados no chão da sala, à volta do seu sofá, o carinho atento, a doce palavra lengalengada, histórias meadas que desfiava gesticulando com as mãos de sumida carne e grossas veias. “Sola sapato/Rei rainha/Foi ao mar/buscar sardinha… Pico, pico seranico/Quem te deu tamanho bico.” O jantar está servido, assoma Rosa à porta entreaberta, de alvo sorriso grande. A travessa da fumegante carne assada, com batatas fritas e feijão verde cozido a ladearem-na, estava disposta na mesa grande, dos adultos. Os miúdos, numa iniciação ritual à hierarquia da ordem social em que se inseriam, comiam na mesa pequena, ao canto da sala. A senhora ainda viveu mais alguns anos rodeada do jardim, dos netos e do relvado com o baloiço, até que, como sucede quase sempre, a vida quis outra coisa para ela. A vencida Rosa, depois de lavar a louça, arrumar as panelas e lavar o chão da cozinha, retirou-se para o seu agasalho. Entorpecida pelo cansaço, ainda teve forças para folhear o último folhetim Corín Tellado, antes de adormecer suspirando. Ia sonhar que o José Cheta a tomava nos braços, enlevando-a, enquanto o sol se punha no termo do passeio dominical à Boca do Inferno. Só para ela, ele cantaria a sua música preferida: “Foi para lá daqueles montes”. A Rosa veio a casar-se com o anunciado magala e deixou de servir, o seu marido queria-a dona de casa e ela, resumida, foi viver outra vida.
A Vivenda Maria de Lourdes, é hoje a sede de uma sociedade de advogados especializada em negócios internacionais.

a.rapazote





sexta-feira, 20 de junho de 2014




 



NATUREZA-MORTA



Embargada pela gramática exausta

Que a vincula ao léxico manso

Ao grosso uso dos dias

À literalidade das coisas contingentes

Na inabitável espera, ferida de deus

Quase árvore desvairada

Abrindo o leito inerte do verbo

Ao desassossego substantivo do verso

A poesia forja a língua que a compreende

Com palavras de assombro, estranhas aves 

Que se debatem, agónicas, no seu subsolo.

Na terrível perfeição do seu inacabamento

Sem utensílio nem firmamento

O poema fala a falha geológica da linguagem

Cravando a sua natureza morta

No escuro coração mineral do silêncio:

A acoitada perdiz silente, a lesta lebre hirta

A rotunda uva distinta, o voraz goraz maturado

O berrante faisão anoitecido, o veloso gamo escalado

A meada romã madura, o certo cão adormecido.



a. rapazote




quinta-feira, 3 de abril de 2014





Sumário das causas primeiras das grandezas passadas e das muitas aflições presentes dos constantes Lusitanos.


Só a luz das causas primeiras apazigua a Razão, quando esta põe diante dos olhos os desmandos, os desacertos e as injustiças do mundo. Talqualmente as misérias, as grandezas dos homens e as virtudes dos povos só se legitimam aos olhos da Razão quando as ilumina aquela mesma luz. Estas breves letras não visam esclarecer cabalmente um assunto que a negligência dos homens, e as trevas dos tempos, ocultaram sob o espesso manto do esquecimento. O que as motiva é apenas o salutar anseio da procura e aprendizagem das coisas passadas, para melhor compreensão dos inamovíveis infortúnios de que as gentes padecem, sempre de forma desigual, no lusco-fusco do tempo que vivemos. No estudo das origens colhemos paciente ensinamento e benévola consolação para os infames males presentes, o que apouca a sua aflição e nos lança na busca de um vento para outro futuro . A notícia primeira do que busco, antecede no tempo a ventosa Tróia e a guerra que nela se travou entre deuses e homens, levando-nos a um tempo remoto, em que a beleza de um rosto conseguiu o irrepetido feito de lançar mil navios, inúmeros reis e incontáveis homens, numa peleja de dez longos anos, a que vieram pôr termo o incêndio da flamejante cidade e a perdição de todos os belicosos heróis nela presentes. As razões da contenda de que trato nunca foram inteiramente percebidas, tendo o decurso do tempo ocultado as suas verdadeiras causas, sob as muitas e desvairadas vozes que se sucederam sobre o assunto, de forma que não podemos nós hoje dizer nada sobre a matéria, que não tivesse sido já referido por outros com mais detalhada clareza e informada ciência. Tendo como única fonte os ecos daquelas contraditórias vozes, e delas apenas colhendo, sem as discriminar, as que se perfilam como mais plausíveis, passo ao tema. É provável que tudo se tivesse precipitado com o escandaloso furto, perpetrado pelo furtivo Hermes, de uma garbosa ninfa que Zeus metamorfoseara em vitela e que ainda não conhecera o aguilhão. Febo Apolo, seu proprietário, que a estimava mais do que aqui cabe referir, gozava de muitos e solenes atributos, de entre os quais sobressaíam os de ser o senhor da morte súbita, com suas flechas infalíveis, da música, com a sua flauta encantatória, das doenças, por meios cujo conhecimento não chegou até nós, e da vingança, que se valia de todas as maneiras possíveis. Possuía ainda o divino proprietário, uma competência que se sobrepunha a todas as outras insignes qualidades que decoravam o seu luminoso carácter; a de punir as violações da lei sagrada. O nojo pelo furto, coisa de sempre entre os deuses e de algumas vezes entre os homens, era assente na crença da intangibilidade da propriedade, constituindo um forte arrimo da jurisdição olímpica, cujo desrespeito acarretava as mais terríveis penas. Se pela repetida e aturada leitura dos poetas antigos, alguns tomam conhecimento do amor que os deuses devotavam ao armento, pela vida tal como a vivemos, seus modos e recorrências, todos nós sabemos da insânia e do desatino a que são votados aqueles que o alígero sentimento toma. No peito reluzente do oblíquo Apolo, uniram-se o despeito e o sentimento exarcebado que o unia à bela vitela, comunando-se ambos na vontade capaz de punir os delitos de que aquele usufruía, o que, tudo junto, apenas poderia originar consequências devastadoras, como se saberá adiante. Porque também no Olimpo a justiça ordena o direito, codificando-o volumosamente, foram determinadas diligências várias, aturadamente efectuadas entre eles, em resultado das quais os deuses não conseguiram acertar-se na atribuição de uma fundada culpa a nenhum deles. Sucedeu então que, sob a férrea influência das indómitas fúrias, o irado Apolo lançou-se no mundo com vesânia dobrada pela cega vingança, tomando os seus iracundos actos por vítimas, preferentemente, os cães velozes, os mulos cinzentos e os homens vulgares. Fulminados os infaustos galgos e os demais cães, cuja velocidade em demasia condenara, foi-se o filho de Zeus aos cínzeos mulos, dizimando-os à força de certeiros coriscos. O enfurecido deus tornou-se então para os homens vulgares com nefasto denodo e sobre eles se lançou à setada. A humanidade, constituída na sua enorme maior parte por homens comuns, viu-se, a breve trecho, conduzida à sua quase extinção no imenso orbe sub lunar, não sobrevivendo do grande números daqueles, mais que uns escassos poucos, babelicamente dispersos pelas quatro partes do mundo. Segundo atestam os relatos mais verosímeis, nunca vividamente confirmados, os mais extraordinários indivíduos que integravam a outrora numerosa humanidade, todos eles esplêndidos nos usos e ilustrados eruditos de ciência vária e completa nas artes, refugiaram-se nesta recôndita região da Ibéria, a sobre todas notada Lusitânia, onde porfiadamente prosperaram, apesar das crescidas agruras a que o infortúnio próprio e os interesses mesquinhos dos outros povos sobrevivos, os sujeitaram. Os seus avisados descendentes, a confirmar-se a veracidade da fama, por certo cultivam os mesmos usos e qualidades dos seus maiores, pelo que apesar das provações a que a fortuna os expõe, nunca se isentando eles da culpa própria na determinação do seu destino, são, ainda hoje, a glória e exemplo do mundo, o reluzente espelho de todas as virtudes, o imorredouro farol da esperança no futuro da humanidade, atenta a demonstrada excelência das suas origens. Contudo, não sendo certo o facto destes homens serem aqueles que hoje somos, ou de, sequer, termos por costumes as ancestrais virtudes daquela insigne gente, cabe-me apenas dar notícia do assunto referido por muitos, em obras cujo rasto se perdeu, compilando as fragmentadas vozes ainda vivas, para aprendizagem dos homens de hoje e arrimo da sua porfia quotidiana contra os revezes da sorte.

NOTA DO EDITOR:
Texto inscrito em tabuinha de buxo, de autor desconhecido, circa século I A.D., descoberta nas ruínas de um edifício público situado em Emerita Augusta. Após estudarem o contexto do local onde foi descoberta, os arqueólogos aventaram a hipótese de se tratar de um texto produzido por um ocioso burocrata ao serviço da administração romana. Atendendo às imprecisões factuais, mitológicas e literárias contidas no fragmento transcrito, aos anacronismos notoriamente fantasiosos e à total ausência de referências culturais frequentes nos textos coevos, alguns estudiosos afirmam tratar-se da introdução a uma obra menor, não referenciada, de um obscuro literato ibero, romanizado, versado na compreensão de textos de complexidade limitada. Estudos mais recentes, efectuados às estruturas gramaticais e semânticas do fragmento, vieram reforçar esta tese, vindo a concluir que a literacia do autor não excedia a capacidade de ler e escrever cartas.


 a.rapazote
 

sexta-feira, 7 de março de 2014


A ERRÂNCIA QUIETA DAS COISAS SEM COMÉRCIO
Ateei 365 incêndios na noite de que partiste.
Na minha carne devastei a terra inteira e, transido, chorei.
Não cauterizei os dias, mas já consigo erguê-los um a um
Medindo sombras na lama, enquanto as cinzas caiem na alma.
Traço agora diagonais infinitas entre o que me resta e nada esperar 
Pois a alma embevecida carece de actividades improváveis.
Sei hoje haver dores altas como ciprestes
Dores que se alongam como muros escuros
De quintais de que ninguém cuida
Dores que se demoram antes de ficarem para sempre
Dores que se habituam a nós e nos habitam
Nos chamam seus
Dores cujo secreto exercício isenta o olhar das palavras.
As que acendeste reclamam água e terra, rito e vassalagem
O tempo inteiro da palavra para o silêncio de um verso.
Hoje não digo “rosa”, “ orvalho”, “manhã de Março”
Sem que um soluço me capture o perímetro oceânico da voz
E a última nau parta para a errância quieta das coisas sem comércio
Ardendo noite adentro em mim.
a. rapazote

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014


A ínfima aritmética dos dias

 

A matemática do universo é alheia à pequena aritmética com que talhamos os dias. A dimensão maior das coisas que se perfilam na nossa circunstância, que nos definem o horizonte e que, nessa medida, nos definem a nós, é um pequeno soluço existencial persistente e irrelevante na imensa noite cósmica.





sábado, 1 de fevereiro de 2014


O Gramático

Para a construção dos seus textos recorria a materiais menores, de vária proveniência e incerta qualidade. Talheres de metal envelhecido, pedras semi-preciosas, isqueiros estragados e outra parafernália empobrecida, frequentavam-lhe o estro rústico. Com lento, mas robusto desvario, fustigava os textos com metáforas fatigadas, alagando-os com elas como os leitos dos rios fazem às margens quando correm cheios. Encastoava-os minuciasamente com palavras sem luz nem lustro, quais pechisbeques literários a que, com rigorosa imprecisão, apelidava de poemas. Noutros momentos de furor criativo, com metódico aprumo, usava alinhar as palavras num dominó sintáctico, convencido de que desse especioso exercício literal resultaria um soneto, um canto, quiçá um hexâmetro dactílico. Quando a mecânica combinatória o favorecia, o falido talento espreitava o torturado verso, nele sucumbindo à ausência de fulgor. A raridade de tais conseguimentos não o demoveu da ousada epifania de que o mundo era intrinsecamente determinado por uma ordem natural que, desde logo, naturalmente atribuíu a um demiurgo.  Munido desta improvável certeza, que cria inexpugnável ao assalto razoável de uma qualquer dúvida, adormeceu dogmaticamente na busca da nunca descoberta jurisdição universal,  regida pela estrita Necessidade, com que o bom deus dotara o mundo. Não sei se, na última hora, chegou a compreender que o permanente acaso e alguma persistência, podem gerar universos, nunca um sentido. 

 a.rapazote

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014





A partilha

Após longa disputa, com origem no longínquo início dos tempos, deus e o diabo decidiram partilhar o universo.
- Eu fico com a parte do inferno e tu com o céu, disse o diabo, tomando a iniciativa negocial.
Deus aquiesceu, o reino do bem fora sempre o seu desígnio. Com a lenta mansidão que os justos põem nos mínimos gestos, recolheu-se em silêncio ao remoto céu, não sendo visto desde então. Supõe-se que, em beatitude, por lá reine até ao advento dos últimos tempos, por si concedidos à sua eternidade.
O diabo, então, voltando-se para nós, sorriu.


 a.rapazote


 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O paraíso é um lugar estranho
 
Num paraíso sombroso, sob uma macieira, um Adão anómico esconde um ramo de flores nas costas. No horizonte, mais claramente, anuncia-se o mundo sob a forma quotidiana de uma casa. O paraíso é um lugar estranho ao homem, as sombras que o habitam sabem-no.


a.rapazote
 
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014




VOZ PASSIVA

A engenhosa morte, bicho laborioso, minuciosamente nos reclama.

Encurralados no estreito beco do peito, rua a rua, somos menos cidade.

Em dia definitivamente escuro


Acordamos sem vizinhança com nada

Sem haver em nós quem seja


Nem de quem fomos memória.


Finado hemos de ser.



a.rapazote

domingo, 12 de janeiro de 2014


Insight


 A janela introduz-nos numa sala familiar. Ele, atento a nada, debruça-se sobre as páginas de um jornal circunstancial. Ela, numa postura dividida, senta-se voltada para ele, mas procura no piano, provavelmente desafinado, um acorde, uma melodia que diga a sua vida. Nenhum dos dois ainda disse nada, mas a porta, central, meando-os, insinua uma saída.
 a.rapazote


 


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014





 
O lamento de Xerxes
 

Encostei a voz à muralha ardida de uma cidade sem nome.

De que me serve esta lança embotada

Entre aqueles que a sua longa mão apeou?

Ai das palavras em que sopra o férreo silêncio que a morte ordena,

Ai daqueles em que o seu frio acontece, pois são últimos.

O grande incómodo de existir revela-se em pequenas coisas

Como as rosas encarnadas da Amartis
 
Ferindo-as de uma significância inabitável.

As menores palavras, sem rasgo nem espanto

Como o fio de água do mínimo regato

Recolhem a dor maior.

Na praia ultramarina, sob o plúmbeo céu,

Minuciosas mãos miúdas desmantelam um vago barco.

Sou já todos os que estarão mortos dentro de cem anos.
 
Para onde vão os nomes, por que ninguém chama, quando anoitece?

Nunca houve dia.

A alvenaria do tempo requer uma gramática escura,

Instrumentos tácitos, como o tenso arco e a exacta seta

Ou mesmo a palavra luz, quando faca acesa.

Esta noite, parada no meio da vida, é uma palanca morta

Um casario ruído nas palavras,

Pertence à certeza caduca de que tudo sucede numa ordem.

As gaivotas, mortas no areal, são um despojo dessa tempestade

Ou as magras exéquias de uma dor insepulta?

 À mansa luz dos dias que me contam, resto no chão que salguei.

 O exercício da vida apenas assegura a dura pensão do olvido.

a. rapazote

Na morte de
Maria Adelaide

Em Março, olhaste o último cavalo da noite.
No undécimo dia do trezeno ano,
Tomaste um barco de nome inóspito
E subiste o rio que leva à foz mais alta.
Fez-se, nos que ficaram, um Inverno definitivo.
Deixaste-nos a província ultramarina do teu sorriso,
Pérola intacta, acesa no nosso escuro descontentamento.
A tua última voz reúne os que te continuam.
«Agora vão», disseste, «quero dormir».
 

a.rapazote
 




Francisco

Nada sabemos da escura gramática dessa noite.
Jazes nas cinzas para que voltaste
Ou já és nuvem?
O teu partir sem estrépito foi para Cartago
Ou para Cabinda?
«Somos isto, Francisco?», disse Maria
Com térreo horror na boca agastada.
Não sei que somos, apenas que caças.
No souto cerrado do que finda
Persegues no prado parada palanca
Ou a perene perdiz ainda?

Afinal, Francisco, todas as coisas são só isto.
 

a.rapazote
 



M.A.R.


Lembro-te árvore
Castanheiro, de ramos abertos com pássaros a arder
De diurno coração em frondoso riste e a voz exacta
Buscavas o espinhoso fruto de um sentido áureo
Para o inelutável absurdo da nossa contingência.
Eras então água acesa, lava corrente
Incêndio em parada no prado.

Outonaste sem doce fruto, Mangueira peregrina
Em chão de sumidos freixos e muros altos
Com as ameias do anoitecido coração
Armadas de palavras sem terra nem arados
Somando aos idos, os dias que não chegaram a vir 
E às sombras jacentes em volta, as crescentes na alma.

De cerrados ramos
Como mãos que desistiram de querer
Norte e aves  
Sei-te hoje perene, Oliveira.




a.rapazote












O Frio
O frio é, aqui, metafísico. O aquecedor e o casaco vestido evidenciam-no. Lá fora, onde aparentemente a noite está, as luzes alinham-se em direcção ao seu centro, nada iluminando. Nada há a iluminar nesta noite, apenas a treva na alma da mulher só, sentada no bar, com frio, na mesa do canto, defronte de uma cadeira que, de alguma forma o sabemos, ficará vazia para sempre.

a.rapazote


 



Zeus pinta borboletas.


Zeus pinta borboletas. Ter-lhe-ia sido mais fácil, humano, recorrer ao seu poder divino e criá-las. Para ocupar os longos dias, plenos de tédio, da sua imensa eternidade, preferiu, num exercício de humildade divina, pintá-las. Talvez este momento traduza o instante mágico em que o demiurgo pinta ociosamente e as criaturas, bafejadas pela existência, surgem "ex nihil". Não custa imaginar os pequenos seres surgindo da tela, estonteados, no voo inaugural da sua breve existência.
No conto "A salvação de Wang-Fô" de M. Yourcenar (Contos Orientais), o velho pintor Wang escapa à clausura a que o imperador o condenara, pintando numa tela um mar de jade azul e nele um barco em que se evade, assim inventando a sua própria fuga.
Sobre borboletas e humanos, Chuang-Tzu (Poeta-filósofo, como distingui-los?, do século Iv a.c.), confundiu-nos-as assim belamente:

"Uma vez, eu, Chuang-Tzu, sonhei que era uma borboleta, que revoluteava e me divertia. Não tinha a mais pequena ideia de ser Chuang-Tzu. Depois, de súbito, despertei e fui de novo Chuang-Tzu. Não consigo determinar se terei sido Chuang-Tzu sonhando ter sido uma borboleta, ou uma borboleta que sonhara ser Chuang-Tzu. Todavia, alguma diferença deve existir entre Chuang-Tzu e uma borboleta! É a isto que chamamos a transformação das coisas"


a.rapazote





Dosso Dossi. Júpiter, Mercúrio, e a Virtude



 




Sabedoria

A derradeira sabedoria abre-se à morte doce 
Às mãos cheias de vinho
Ao breve céu da boca que se cala no corpo.
No restolho da memória, acesa sombra, o seu verso espera.
Um cão sentado vela-o.
Que alonga o voo da ave que se perdiz?
A única sabedoria habita o cimo paciente do dia
Lugar sem vento no gesto, ou vontade sequer.
Sem a perturbação oblíqua de uma esperança
Adormece na memória ínsone da milionésima primeira noite.

a.rapazote